sexta-feira, 24 de agosto de 2012


"A vida dói


-É a vida

Realmente, é verdade: é a vida. Às vezes muda sem nos pedir licença, sem nos avisar. Às vezes, aquilo que tinha tudo para correr bem, acaba por correr mal. Fazem-se escolhas. Vivem-se essas escolhas e depois

-É a vida

Ficamos admirados a contemplar a vida a atropelar-nos. Acabamos abraçados às paredes de queixo partido, de dentes partidos, de pernas partidas, de braços partidos, de coração partido. Acabamos. Desfeitos. Acabamos. E é nos finais que sentimos a vida no corpo. A despenhar-se na nossa direção a duzentos quilómetros por hora. É nessa hora, nesse preciso momento, que a sentimos nos ossos e nos músculos e nas veias. A vida dói. Vai passando por nós sem pedir licença. Levando o que amamos consigo.

-Vai.

Matando-nos devagarinho: centímetro a centímetro.

-Não queres que fique?

(Um olhar no vazio.)

-É por querer tanto que fiques, que te peço que vás.

O relógio da estação a teimar em parar o tempo. Cada segundo mais longo que o outro. Até o ar parecia parar, teimando em não entrar nas narinas, em não chegar aos pulmões.

-Mas eu quero ficar. Quero ficar contigo. Como é suposto ser feliz sozinha?

Ao ouvi-la os meus ossos a racharem lentamente. Cada palavra um murro no estômago. As pessoas a desviarem-se, ágeis,  ignorando o meu sofrimento. Os comboios chegavam e partiam sem que nada os fizesse parar: nem o relógio, nem as lágrimas, nem o meu corpo quase desfeito em pó de giz. Nada os fazia parar. Nada fazia parar a vida. E enquanto ela seguia o seu rumo atropelava-me uma e outra vez. Inconsciente do meu sofrimento, ou do sofrimento da Luísa. Ignorava-nos. Ignorava as lágrimas dela

-Nunca serei feliz sem ti

Ignorava as minhas dores.

-Então sê feliz por mim. Peço-te: sê feliz. Faz isso por mim.

-Esperas?

A mão dela tremia na minha. Sentia-a a apertar-me com as forças que lhe restavam. Os nossos dedos abraçavam-se eternamente. Sentia as unhas dela na minha carne. A marcarem-me uma última vez. Queria guardar na pele uma chaga que fosse que me lembrasse dela. Não queria encarar aquele momento como um final, ou um adeus. Queria que fosse só mais um entretanto. Que é aquilo que realmente somos: entretantos. Olhei-a nos olhos e limpei-lhe suavemente as lágrimas do rosto. A cara dela brilhava de tristeza e isso matava o que ainda restava de mim. A mão dela teimava em não largar a minha, com medo da falsa eternidade que sabia unir-nos. Engoli um trago de saliva e lágrimas. Olhei-a nos olhos, como se olha quem se ama, e respondi-lhe

-Por ti? Uma vida. E se existir outra continuarei a esperar.

Ainda me lembro daquele último sorriso de papel vegetal: leve, frágil, transparente. Sorri com ela e ajudei-a a subir para o comboio. Beijámo-nos ao som do sinal de partida e nesse momento senti-me como se fosse feito de pó, a espalhar-me pelo mundo: um braço aqui, um pulmão ali, o coração acolá. Sentia-me mutilado, partido, incompleto. O meu amor, o meu grande amor de oito anos, acabara de desaparecer atrás de uma vidraça, à velocidade de um alfa pendular. E eu corri para não a perder de vista. Corri sem condições de a alcançar.

(-É a vida)

Espero que realize todos os seus sonhos e um dia volte para me completar."

PedRodrigues

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Lado esquerdo



O meu lado esquerdo
é mais forte do que o outro
é o lado da intuição
É o lado onde mora o coração

O meu lado esquerdo
Oriente do meu instinto
É o lado que me guia no escuro
É o lado com que eu choro e com que eu sinto

Meu é o meu foi o meu lado esquerdo
Que me levou até ti
Quando eu já pensava
Que não existias para mim no mundo

O meu lado esquerdo não sabe o que é a razão
É ele que me faz sonhar
É ele que tantas vezes diz não

Meu é o meu foi o meu lado esquerdo
Que me levou até ti
Quando eu já pensava
Que não existias para mim no mundo

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

À Beleza


Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

Miguel Torga, in 'Odes'